“Independência ou Morte” tem muita ficção, assim como grito de Dom Pedro I
A pintura exposta no Museu Paulista, no bairro do Ipiranga: liberdade para
criar história brasileira
Uma tela gigantesca, de 4,15m de altura por 7,60m de comprimento, mostra um
valente Dom Pedro I erguendo sua espada no ar, às margens do riacho Ipiranga,
acompanhado por uma tropa de alazões e oficiais bem alinhados, a declarar a
independência do Brasil de Portugal. É o quadro “Independência ou Morte”, de
Pedro Américo, hoje no acervo do Museu Paulista, conhecido como Museu do
Ipiranga. O ano da cena era 1822.
O resto, quase tudo ficção.
Nascido 21 anos depois do episódio, Pedro Américo só começou a trabalhar na
pintura em 1885. A pedido de Dom Pedro II, arauto da história brasileira, veio
da Itália, onde ficava seu ateliê, para visitar a região do Ipiranga e estudar o
terreno, a topografia local. Depois disso, o artista voltou à Europa e trabalhou
até 1888, quando finalmente o quadro chegou ao Brasil – alojado, primeiramente,
no Palácio do Governo, já que o prédio em homenagem à independência, o atual
Museu Paulista, só seria concluído seis anos mais tarde.
Por que, mais de meio século depois do rompimento com Portugal, a monarquia
se interessou em resgatar esse pedaço da história? De acordo com a historiadora
Cecília Helena de Salles Oliveira, diretora do Museu Paulista e autora do livro
O Brado do Ipiranga, as elites e os intelectuais tinham interesse em
eternizar esses momentos para a configuração da nacionalidade. O século 19 é
rico na chamada pintura
histórica, tanto aqui – a primeira missa no Brasil, em 1500, só virou quadro
em 1860, pelos pincéis de Victor Meirelles – quanto no exterior – “Coroação de
Napoleão”, de Jacques Louis David, é um dos marcos da nacionalização
francesa.
Foto: Divulgação
Comitiva numerosa e arrumada, só anos depois, e nada de cavalos: mulas para
aguentar o caminho
Era, também, uma tentativa da sociedade de registrar seu tempo, já que, do
contrário, provavelmente os fatos cairiam no esquecimento. O próprio Pedro
Américo fala sobre isso em um folheto que escreveu ao concluir sua pintura: "é
preciso conter a voracidade do tempo e tornar imortal algo que as gerações
atuais não viram”. No mesmo espaço, tenta justificar as liberdades que teve ao
imortalizar em tinta a rebeldia de Dom Pedro – "a realidade inspira, e não
escraviza o pintor".
Ninguém sabe, ninguém viu
As liberdades, aliás, foram várias. Para começar, os numerosos oficiais de
branco e penacho nunca poderiam ter sido tantos. “[Pedro Américo] aumentou muito
esse número. A guarda do imperador só foi organizada meses depois. Ele quis
fazer uma encenação de caráter público para uma decisão que nunca poderia ter
sido dada publicamente, que ninguém viu, já que estava a nove quilômetros do
centro da cidade, no meio de um arrabalde, onde não havia nada”, afirma a
professora.
Por isso, os simpatizantes da independência e correligionários de Dom Pedro
dificilmente estariam ali. No canto direito, inclusive, há um senhor de cartola
empunhando um guarda-chuva como se fosse uma espada. Uma lenda afirma que se
trata de um tio de Pedro Américo, homenageado pelo pintor, mas a historiadora
afasta essa possibilidade. “É mais para ornamentar a tela, para dizer que não
apenas os tropeiros, mas a população civil também se envolveu no assunto.”
Também à direita está uma casa, que, atualmente, tombada pelo patrimônio
histórico e ainda de pé, é conhecida como Casa do Grito. A questão é que o
primeiro registro que se tem dessa construção é de 1884, às vésperas de Pedro
Américo visitar a região, ou seja, ela não estava lá durante a passagem do então
príncipe. “Em decorrência do quadro, aquela casa de pau a pique conseguiu
sobreviver a todas as destruições que São Paulo testemunhou. A casa que Pedro
Américo viu é muito mais recente, colocou ali para dar um fundo. Na cabeça dele,
como Dom Pedro poderia ter declarado a independência no meio do sertão, sem
nada?”
Foto: Divulgação
O "tio" de Pedro Américo, com o guarda-chuva, e a Casa do Grito: quadro criou
lenda para a construção
Esse arrabalde onde “não havia nada” era o final da estrada que ligava o
planalto de São Paulo à Estrada de Santos. Era uma rota muito utilizada por
tropeiros e pelo comércio, já que mercadorias e escravos desembarcavam no porto,
e também muito difícil, subindo sinuosa, quente e mal pavimentada por entre a
Serra do Mar. “Exigia um esforço imenso e um dia inteiro de viagem, às vezes até
dois. Não tinha cavalo que aguentasse subir aquilo rapidamente, por isso se
usavam mulas”, conta Cecília. Ao invés de um belo corcel, portanto, é certo que
Dom Pedro estava sobre um burrico.
Para piorar, dificilmente o futuro imperador estaria animado para qualquer
ato heroico. Uma diarreia o atormentava desde a saída de Santos, por conta de
seus excessos à mesa no dia anterior, e obrigava a comitiva a parar a todo
instante. No fim da viagem, nem repouso ou reuniões políticas – em São Paulo,
Dom Pedro resolveu ir ao teatro.
Grito não aconteceu
As cores da independência, portanto, tinham um tom bem diferente da paleta
escolhida por Pedro Américo. De certa forma, essa fantasiosa versão oficial
acompanha o próprio mito da independência brasileira. “Tudo indica que aquele
episódio, romanceado, não aconteceu.” A diretora do Museu Paulista ressalta, por
exemplo, que a separação de Portugal aconteceu de fato em junho de 1822, quando
foi convocada uma assembleia constituinte. Em setembro, Dom Pedro veio a São
Paulo especialmente para pedir apoio dos produtores locais.
“Dom Pedro não era consensual, não tinha condição política para declamar a
independência se não tivesse o aval de São Paulo, uma província muito
importante. Precisava de apoio político, tropas e armas”, explica. O próprio
grito não aconteceu: a expressão “independência ou morte” surgiu de uma carta
escrita por Dom Pedro no dia 8 de setembro. “Prezados paulistas, independência
ou morte é o nosso lema, mas estamos longe de conquistá-lo. Espero vosso apoio e
vossa lealdade”, diz o texto.
Mesmo assim, o quadro “Independência ou Morte” é uma das peças mais valiosas
e emblemáticas da história nacional. Está prevista para os próximos anos,
inclusive, uma restauração da pintura, afetada pela poluição da capital. Seria
uma oportunidade até, segundo Cecília, de descobrir as técnicas utilizadas por
Pedro Américo para realizar a pintura, que espanta por ser uma tela inteira, sem
emendas.
Serviço – Museu Paulista, em São Paulo
Parque da Independência, s/nº
De terça a domingo, das 9h às 17h
Ingresso: R$ 6 e R$ 3 (estudante). Entrada gratuita no primeiro domingo de cada mês e todos os dias para menores de 6 anos e maiores de 60
Telefone: (11) 2065-8000
Parque da Independência, s/nº
De terça a domingo, das 9h às 17h
Ingresso: R$ 6 e R$ 3 (estudante). Entrada gratuita no primeiro domingo de cada mês e todos os dias para menores de 6 anos e maiores de 60
Telefone: (11) 2065-8000
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